Cena de “Pele” | Foto: Divulgação
Acordar, passar um café, se preparar para o trabalho. Essa é a forma que
a maioria dos brasileiros começa o dia e é nessa energia que “Pele”
se inicia também. O mais novo documentário de Marcos Pimentel possui roteiro escrito por ele e por seu parceiro de longa data, Ivan Morales Jr., além de produção de Luana Melgaço e distribuição da Embaúba Filmes.
O longa não possui diálogos, permitindo que a cidade dialogue com quem está assistindo seu cotidiano passar na tela. Além disso, a construção da narrativa tem uma clara cronologia: ela começa com manifestações artísticas humanóides de olhos fechados, que parecem estar dormindo, e evoluem como um dia a dia, culminando em imagens gravadas no início da noite, de comércios fechando as portas, o que transmite a sensação de um dia completo.
O filme tem um pouco de tudo. Tem gente
acordada, gente que dorme, gente indo pra escola, gente que passa, gente que dança, e até gente
que faz yoga. Tudo na rua. A arte urbana também é mostrada sem cortes ou distinção de estilos e o longa parece querer mostrar que existe espaço e poesia em todas as suas formas: no grafitti, na pichação, nas pinturas em telhados, nas propagandas, e muito mais.
Gente que dorme | Foto: Divulgação
Um dos pontos mais positivos do filme é o tempo de transição entre uma imagem e outra. Em um filme sem falas, pode ser difícil encontrar o equilíbrio certo entre dar tempo suficiente ao espectador, para que este faça suas observações, e manter a agilidade e fluidez da narrativa. “Pele” faz isso com maestria, dando tempo suficiente para reflexões mas se mantendo ágil, com o auxílio de uma trilha sonora perspicaz.
Como é de se esperar de uma produção assim, o som é um elemento vital. Conforme Marcos nos contou no primeiro episódio do programa #ENTRECAPY, toda a parte sonora do longa foi realizada em parceria com Vitor Coroa, durante a pós-produção do filme. Assista:
A poesia do documentário fala por si só, mas a trilha sonora confere a ele uma profundidade única. Sem ela, o filme não teria uma base tão forte para sua narrativa. A trilha sonora sutilmente passeia pelos temas, acentuando a urgência de alguns, a irreverência de outros, e atua como uma espécie de voz narradora, que conduz o espectador durante todo o desenrolar das temáticas contemporâneas mostradas. Carros, buzinas, pessoas conversando, vento, passos, são mesclados com músicas, trechos de protestos, e discursos. O trabalho sonoro é altamente imersivo e natural, parecendo pertencer à realidade daquelas imagens e do cotidiano.
O filme aborda vários temas como: amor, desejo, vulnerabilidade social, infância, arte, política, criminalidade, fé, mas tudo de uma forma bem coesa e em que um tema vai se conectando ao próximo. Ele também mescla questões sociais, raciais, e o limiar entre realidade e surrealismo, como representado em algumas obras.
A linha condutora de “Pele” tende a ser os moradores de uma das três cidades em que o longa foi gravado: Belo Horizonte, Rio de Janeiro, e São Paulo. Geralmente, um novo tema é introduzido por um grupo de humanos; em uma das cenas, por exemplo, uma mãe e um filho caminham na rua, logo, imagens nos muros que remetem ao tema família aparecem. Esse é um recurso interessante e que ajuda o consumidor da obra a se situar e entender a progressão do filme.
Algumas das cenas mais empolgantes ocorrem quando alguém espontaneamente interage com a arte que está ao seu redor. O espectador se sente quase como um voyeur, tendo acesso à uma janela do cotidiano do outro, de algo que também ocorre consigo mas que muitas vezes não consegue perceber.
Como momentos principais, podemos destacar o instante em que uma das pessoas filmadas percebe a câmera e a encara de frente, com um olhar questionador, como se o espectador estivesse invadindo sua privacidade. É interessante porque, das centenas de pessoas filmadas, este parece ser o primeiro a perceber estar sendo filmado.
Cenas fortes acontecem também ao se mostrar a relação de moradores de rua com a arte, bem como imagens com a pergunta “Quem matou Marielle?” e trechos sonoros de discursos, declarações de personalidades midiáticas, e protestos relacionados ao assassinato da vereadora Marielle Franco. Imagens feministas e em apoio ao empoderamento feminino, bem como a #elenão, transportam o espectador a um período conturbado da política brasileira, que parece tão próximo e tão distante ao mesmo tempo. É impossível não se emocionar.
Janela Indiscreta do cotidiano | Foto: Divulgação
Mas não é apenas de trechos comoventes que o longa sobrevive. Cenas cômicas também são mostradas, como a interação de entusiastas de selfie com a arte urbana, bem como aqueles que desaprovam esse comportamento, e também os moradores das cidades que interagem com a arte de forma curiosa, sem perceber, por estarem distraídos.
O longa cumpre um papel histórico importante, eternizando muitas manifestações artísticas que nem existem mais. Ele dá voz, força, e os holofotes a uma realidade muitas vezes ignorada e, até mesmo, apagada. Mas, para uma narrativa que se apoia na interação Homem vs. Cidade, seria interessante também ouvir relatos: de quem interage com as obras intencionalmente, de quem as cria, e de quem as destrói.
E, se o conceito narrativo não permitisse isso, talvez então mostrar através de imagens, que protegessem a identidade de seus indivíduos, mais sobre o processo de criação dessas artes, bem como da destruição delas. Explorar também o nascimento e morte de uma obra em específico poderia conferir ainda mais profundidade ao tema.
Os habitantes da cidade vs. A arte da cidade | Fotos: Divulgação
O filme termina destacando a efemeridade das obras, e, como no começo, quer nos fazer despertar, mas agora de uma forma e para uma realidade diferente.
Assim como seu processo de gravação foi baseado em longas esperas e observação, “Pele“ é um documentário para quem gosta de observar e consegue ver a beleza no cotidiano e nas coincidências que acontecem no dia a dia.
“PELE”
(Brasil, 2021, 75 min.). Direção: Marcos Pimentel. Documentário. Em cartaz nos cinemas a partir desta quinta (26/10).