Dirigido por JT Mollner, “Desconhecidos” é uma raridade inquieta que provoca, confunde e convida o público a montar o quebra-cabeça.
Durante décadas, o thriller psicológico foi um dos gêneros mais estimulantes do cinema, marcado por atmosferas pesadas, jogos mentais e personagens duvidosos. Obras como ‘Seven‘, ‘O Silêncio dos Inocentes‘ e ‘Garota Exemplar‘ definiram um padrão de tensão narrativa e complexidade emocional que parecia inesgotável. Mas, com o tempo, esse estilo foi se tornando refém de fórmulas repetitivas, tramas descartáveis e reviravoltas fabricadas. Muitas vezes embaladas para consumo rápido em plataformas de streaming. A sensação de risco, desconforto e surpresa deu lugar à previsibilidade. Pelo menos até agora.
Entrar às cegas é parte do jogo
Falar sobre ‘Desconhecidos‘ é como pisar em ovos. Quanto menos você souber antes de assistir, melhor será a experiência. O impacto do filme está justamente na forma como ele brinca com o desconhecido. Mas uma coisa chama atenção logo de cara: a estética vibrante, especialmente nos tons de vermelho, que praticamente pulam da tela. A cena de abertura já entrega essa força visual. Uma mulher, chamada apenas de A Dama, corre em câmera lenta, o rosto borrado de rímel, enquanto um homem, conhecido como O Demônio, a persegue com uma espingarda em punho. A sequência não explica nada, mas já deixa claro que o que vem pela frente vai ser intenso.

Quebra de estrutura
O filme já começa quebrando expectativas na própria estrutura narrativa. São seis capítulos apresentados fora de ordem, seguidos por um epílogo, exigindo do espectador atenção redobrada para montar o quebra-cabeça por conta própria. A trama se inicia no “Capítulo 3”, um aviso claro de que nada será entregue de maneira fácil. Em um estilo que lembra uma versão mais sombria e violenta de ‘Pulp Fiction‘, o longa mergulha em um jogo de gato e rato onde a linha cronológica se torna secundária. A edição, assinada por Christopher Bell, é um dos pontos altos do filme: as transições entre os capítulos são fluidas e o ritmo se mantém firme mesmo nos trechos mais complexos, evitando que a narrativa se perca no caos.
Ambiguidades à flor da pele
O enredo acompanha os últimos dias de um assassino em série que aterrorizou o noroeste do Pacífico, mas o longa prefere ir revelando suas intenções lentamente. Em uma das cenas mais carregadas de tensão, uma mulher questiona um homem dentro de sua caminhonete, entre goles de uísque e frases soltas, se ele seria um serial killer. A luz azul neon, o tom incerto da conversa e o silêncio que paira entre uma fala e outra criam um clima desconfortável, onde nada é óbvio. A partir daí, o filme mergulha nas zonas cinzentas entre o desejo, o consentimento e o perigo, desafiando o público a entender quem realmente está no controle.

Duelos em carne e mente
Conforme o diretor vai montando esse quebra-cabeça, fica claro que o filme não está interessado em retratar um psicopata genérico. O foco aqui é o confronto psicológico e físico entre duas figuras complexas e em constante colisão. A violência atinge não só o corpo, mas também o ego e o espaço íntimo dos personagens. Parte do peso emocional do longa vem do trabalho afiado do elenco. Willa Fitzgerald e Kyle Gallner entregam atuações cheias de nuances e intensidade. Fitzgerald, já conhecida por seus papéis em ‘Pânico‘ (MTV) e ‘A Queda da Casa de Usher‘, traduz na pele o estado constante de alerta e trauma de sua personagem. Gallner, por outro lado, interpreta O Demônio com um magnetismo perturbador, alternando entre charme e brutalidade. A dinâmica entre os dois é intensa, feita de silêncios carregados e explosões, em um duelo cru, físico e emocional.
Crueldade com estilo
Apesar do conteúdo gráfico e da estrutura não linear, o filme carrega um senso de humor sombrio e uma inteligência perversa na maneira como manipula as expectativas do público. Nada aqui segue o caminho mais fácil. Inspirado por uma estética que lembra os filmes de Tarantino, e filmado em 35mm, a história ganha um charme retrô e uma textura nostálgica que o coloca facilmente entre as futuras sessões à meia-noite dos cinemas mais cult do mundo. No fim das contas, é um longa tenso, sangrento, habilidoso e perversamente divertido. Não é feito para todos os públicos, mas é indispensável para quem busca um cinema provocador. Existe algo de viciante na forma como a obra se recusa a dar qualquer respiro, conduzindo o espectador até o fim. E sim, vale a pena ver no cinema. A tela grande e o som potente só intensificam a sensação de estar frente a frente com o perigo, a tensão e a curiosidade de confiar em desconhecidos.