Exibido no Festival Cinema Francês do Brasil, Mãos à Obra (A pied d’Oeuvre), vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza 2025, marca mais um capítulo autoral na filmografia de Valérie Donzelli ao abordar a tensão entre criar e sobreviver em um mundo de trabalho cada vez mais instável.
Valérie Donzelli esteve no Brasil para apresentar ‘Mãos à Obra’ (A pied d’Oeuvre) no Festival Cinema Francês do Brasil. Baseado em uma história real, o filme acompanha um escritor que abandona a estabilidade financeira para se dedicar integralmente à literatura e acaba confrontado pela precarização do trabalho criativo. Na entrevista, a diretora e roteirista fala sobre identificação pessoal com o tema, parceria artística, inseguranças, autoconfiança e os caminhos que ainda deseja explorar no cinema.
“Mãos à Obra” recebeu o prêmio de Melhor Roteiro em Veneza. Em que momento você percebeu que essa história tinha algo de especial para ser contada agora?
Valérie – De forma muito instintiva, quando li o livro, fiquei completamente inspirada pelo artista, porque eu mesma estava atravessando crises tanto pessoais quanto profissionais. Acabei me identificando bastante com ele, já que o livro, de maneira geral, aborda a questão da autorização do trabalho. Acredito que esse tema consegue se comunicar com o público amplamente, e foi justamente isso que me levou a refletir e a querer contar essa história.
Já existe uma longa parceria entre você e o Bastien. O que mais te encanta nesse processo de dirigir um ator que você já compartilha uma trajetória?
Valérie – Com o Bastien, a gente já se conhecia bem desde antes, então foi muito especial poder trabalhar com ele, já que é um ator que eu conhecia e em quem confiava. Mas, na prática, fui descobrindo cada vez mais ao longo dos filmes esse senso forte de criatividade e de inovação que ele tem. Quando o Bastien assume um personagem, a impressão é de que ele realmente incorpora aquela figura; sinto que ele é muito flexível e consegue se projetar em qualquer papel que eu proponha. Foi justamente por isso que escolhi o Bastien para esse filme: eu queria que ele fosse esse espelho, capaz de refletir o personagem de forma direta e verdadeira para o público.
O protagonista do filme se vê questionando a carreira quando enfrenta várias dificuldades que colocam o sonho em risco. Você acha que, sendo uma mulher diretora e roteirista na indústria, existem desafios que também podem levar a esse lugar de questionamento e insegurança?
Valérie – Na verdade, essa é uma questão um pouco complicada, porque nunca me perguntei se “sou uma mulher na indústria” ou se isso torna tudo mais difícil. É um mercado, mas sabemos que, para as mulheres, querendo ou não, é preciso se provar mais do que os homens, muitas vezes muito mais. Os orçamentos parecem concedidos com mais facilidade a diretores homens, a menos que as mulheres tenham prêmios muito específicos, como uma Palma de Ouro ou algo nesse nível.
Eu me coloco mais do ponto de vista da produção, pensando em filmes que realmente me tocam e que tenho vontade de fazer. Não fico refletindo o tempo todo se o orçamento é alto ou baixo. Não sou uma pessoa com muita confiança em mim mesma, mas tenho o suficiente para me aventurar nesse percurso um pouco perigoso que é fazer cinema. Não tenho uma grande autoconfiança, mas tenho o necessário para me jogar e realizar meus filmes.
Para você, onde está a felicidade quando a escolha pela criação envolve renúncias e inseguranças financeiras?
Valérie – Na realidade, o que é importante na vida é encontrar a nossa própria verdade, esse espacinho de felicidade que não precisa ser grande. É fundamental descobrir esse lugar onde a gente se sente bem, sabendo que cada pessoa encontra felicidade em coisas diferentes. O Frank, como personagem do livro e do meu filme, está justamente em busca desse espaço. Ele encontra a própria felicidade no processo de escrita, e é isso que permite que ele trabalhe para outras pessoas, mesmo quando a situação financeira não é a ideal e traz muitas inseguranças.
A autoconfiança aparece como um tema central tanto no filme quanto na sua fala. Como essa relação com a confiança foi construída ao longo da sua vida?
Valérie – A autoconfiança depende de muitos fatores e tem ligações profundas com a infância, com a forma como fomos criados e com a relação que tivemos com os nossos pais. Ainda assim, eu sempre pensei em fazer algo que pudesse transmitir os meus próprios sentimentos e que fosse vital para mim, a ponto de simplesmente dizer a mim mesma: “Vai e faz”. Tenho três filhos e repito isso o tempo todo para eles: “Vai lá e faz”.
Depois do impacto de “Mãos à Obra”, que tipo de história você ainda sente vontade de explorar no futuro?
Valérie – Depois de ter feito essa adaptação, na verdade já existe um filme cujo roteiro eu terminei de escrever, que se passa no campo da educação e dos cuidados de saúde. A história acompanha um personagem que vive em uma casa de cuidados terapêuticos e enfrenta questões ligadas a problemas psiquiátricos.
A entrevista com Valérie foi realizada durante sua participação no Festival Cinema Francês do Brasil, que exibiu ‘Mãos à Obra’ como parte de uma edição dedicada ao cinema francês contemporâneo. Ao falar sobre precarização, criação e autoconfiança, a cineasta reforça um olhar autoral atento às fragilidades do trabalho artístico e às escolhas íntimas que atravessam tanto seus personagens quanto seu próprio percurso criativo. Confira todas as outras entrevistas disponíveis em nosso site.