Frequentar o cinema é uma das facetas mais gratificantes do entretenimento. Felizmente, há uma ampla variedade de filmes, desde os leves e engraçados, destinados puramente a divertir, até os mais complexos, repletos de mensagens ocultas, diálogos modificados e significados subentendidos. Essa última opção, desafia o espectador a desvendar cada metáfora presente nas cenas. “A Paixão Segundo GH”, baseada no famoso livro homônimo de Clarice Lispector, certamente se destaca como um desses filmes que convidam o espectador a entrar na mente do protagonista e compreender suas inquietações mais profundas. Com uma narrativa envolvente e complexa, o filme oferece uma experiência que foge da mera observação passiva, incitando uma reflexão profunda sobre temas universais como identidade, existência e busca por significado.
A Odisseia de G.H.
Sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, a adaptação da história nos apresenta a Escultora, integrante da elite burguesa do Rio de Janeiro. G.H. decidiu cuidar da casa na ausência da empregada, que havia pedido demissão na noite anterior. Entretanto, ao se deparar com uma enorme barata em um dos quartos, e esmagá-la, a socialite é lançada em uma jornada introspectiva profunda que leva a questionar suas próprias opiniões e percepções sobre a vida, a morte e a existência. Somos conduzidos por um labirinto de reflexões e descobertas, à medida que acompanhamos a transformação interna de GH diante de um evento aparentemente simples, mas que desencadeia uma avalanche de questionamentos existenciais.
A Complexidade de GH Encarnada por Candido
Reconhecida por sua habilidade em dar vida a personagens complexos e multifacetados, Maria Fernanda Candido assume o desafio do papel: uma mulher urbana e intelectual que se vê confrontada com uma crise existencial após um encontro inesperado com uma barata em seu apartamento. Como era de se esperar, a atuação é entregue impecavelmente. Candido consegue transmitir na tela cada fragmento de emoção que atravessa GH, capturando as mudanças repentinas de humor do personagem de maneira convincente.
Quebrando a Quarta Parede
Além disso, neste filme, não há barreira imaginária entre os personagens e o público. A personagem faz o que chamamos de “quebrar a quarta parede”, reconhecendo implicitamente a presença do público e interagindo com ele de uma forma mais direta. A impressão que fica, é de que a técnica foi utilizada para criar uma conexão mais íntima com a audiência, comunicando os pensamentos internos do personagem diretamente. Assim, somos levados a mergulhar profundamente na mente e no mundo interior de GH, experimentando suas angústias, descobertas e transformações ao lado dela.
Intimidade Por Trás dos Detalhes
O filme mergulha profundamente na psique da protagonista, explorando sua jornada de autodescoberta com nuances de sensibilidade e loucura. A trilha sonora é quase inexistente, uma escolha visa criar uma atmosfera imersiva, mergulhando o espectador em uma mente tumultuada. O pillarboxing, presente desde o primeiro segundo do filme, somando com a filmagem toda em 1:1, permite que a narrativa e a personagem assumam o centro do palco, sem distrações.
Os Confrontos de G.H. com a Morte
Assim como no romance, a presença marcante da barata como símbolo é habilmente explorada no filme, servindo como um lembrete constante da fragilidade da vida e da inevitabilidade da morte. Os cortes que enfocam o sangue da barata podem, em alguns momentos, despertar uma certa repulsa. Contudo, essa reação do público é parte da intenção do filme em transmitir a intensidade e a crueza da experiência de GH. Os espectadores são confrontados com a brutalidade da vida e da morte, assim como a personagem, buscando uma reflexão sobre a natureza efêmera e frágil da existência humana. No geral, os momentos de confronto entre G.H. e a barata são os únicos momentos com um diálogo mais feroz, destacando não apenas os temas centrais da obra, mas também a incrível habilidade de Maria Fernanda Candido como atriz.
Considerações Finais
Em suma, “A Paixão Segundo G.H.” surge como uma adaptação cinematográfica que mantém a essência e a profundidade da obra original de Clarice Lispector. No entanto, é importante reconhecer que o filme pode não agradar a todos os públicos devido à sua linguagem complexa e às metáforas. Para alguns espectadores, tornam duas horas de exibição, radicalmente cansativa. No entanto, para os fãs da obra de Lispector e aqueles familiarizados com esse tipo de abordagem artística, o filme honra o legado literário da autora, oferecendo uma experiência cinematográfica reflexiva.