Por: Andie Gonçalves
Vozes falam, mas a tela não mostra nada. Alguns minutos se passam, e este continua sendo o panorama em “A Bela América“. Então começam gritos, choros, movimentos… Silêncio. Alguém vai invadir uma casa, alguém vai mudar a vida de alguém para sempre.
É assim que começa o mais novo longa de António Ferreira, apostando na intensidade e no suspense já de cara. É impossível não se perguntar “quem são essas pessoas?“, “o que estão fazendo alí?“. É impossível não sentir empatia por uma família que enfrenta um problema que atinge milhares de portugueses, brasileiros, e pessoas de todas as nacionalidades ao redor do mundo: a crise habitacional.
Apesar de o filme, desde o início, ser uma clara denúncia tanto às desigualdades sociais quanto à política populista e fanática adotada por alguns políticos da atualidade, “A Bela América” surpreende justamente pelos gêneros cinematográficos que escolhe para fazer isso: o suspense e o humor.
As críticas sociais estão em primeiro plano, tendo, inclusive, a personagem Noémia (Daniela Claro) literalmente recitando alguns dos temas ali narrados; porém, o que mais prende a atenção é a interação entre América (São José Correia) e Lucas (Estêvão Antunes).
Independente de suas respectivas bússolas morais e padrões de vida completamente diferentes, desde o primeiro momento em que se encontram, os dois parecem ter algum tipo de sintonia. É como se reconhecessem algo que pertence a si no outro, como se soubessem que, apesar de vidas bem diferentes, no fundo são iguais. E isso é muito bem explorado ao longo do filme.
Talvez o maior mistério de todos seja justamente essa identificação palpável, ainda que não dita, entre os personagens. Algo que de forma gradual e bastante inteligente vai sendo explicada no decorrer da trama até seu ápice, que ocorre no final.
Além da difícil situação de vulnerabilidade social que Lucas e sua mãe enfrentam, bem como a parte política, outros temas bastante interessantes são abordados no longa, como a meritocracia, o conceito de amizade, e os conflitos pessoais e sociais que se enfrenta ao cuidar de algum familiar com necessidades especiais.
A angulação da câmera não é muito favorável nas primeiras cenas. O que talvez seja proposital, para retratar com mais viceralidade a precariedade da situação. O efeito obtido, no entanto, não é o desejado, e acaba causando mais uma vertigem do que qualquer outra coisa.
A boa notícia é que isso é melhorado em diversas cenas posteriores, como em uma em que Lucas vê América em um programa de TV, fixa seu rosto na tela, e é como se ela se esquivasse à medida que ele se aproxima. Durante toda a cena, também, ela parece nunca confrontar a câmera que a está filmando e estaria vindo da direção dele.
Outras cenas interessantes ocorrem sempre que América prova os pratos feitos por Lucas. A câmera filma a personagem por trás de uma porta com frestas, da qual Lucas está escondido, observando a ex-apresentadora de TV comer. É como se víssemos o que ele está vendo e, assim, entedêssemos seu fascínio por ela. A câmera também deixa o espectador em dúvida se América sabe que está sendo observada, o que é muito interessante para a construção da narrativa como um todo.
E falando em comida, é assim que essas duas almas solitárias se unem: pelo prazer da culinária. Nada é dito com palavras, mas é sentido. Um carinho nasce por meio dessa conexão gastronômica, o que é um tema que vários filmes antes de “A Bela América” já abordaram antes, mas talvez não de uma forma tão criativa como o longa propõe.
O roteiro tem seus pontos falhos também. Como a mãe de Lucas, que está sempre dormindo do nada, até de dia, e ainda que o porquê fique implícito, ele não é conclusivo o suficiente para justificar certas cenas. Também o aparecimento de uma figura-chave da vida de Lucas, que ocorre sem um motivo forte o suficiente para que seja necessária. Além disso, fora a cena inicial, o filme começa bem morno, com alguns diálogos previsíveis e sem muitos atrativos. Ele pega velocidade do meio para o final.
E que final. Surpreendente. Esta é a única palavra capaz de descrever. As cenas são inesperadas e solucionam vários dos mistérios que a narrativa propõe, inclusive sobre a conexão dos personagens principais. A sensação que fica, após uma conversa eletrizante entre Lucas e América, se compara à sensação de respirar depois de um longo período de tempo debaixo d’água.
Sem contar que é um show de atuação por parte de ambos os atores. Inclusive nos fazendo questionar porquê não lhes foi permitido ter outros embates mais frequentes e mais cedo no longa. São José Correia é realmente bela, cativante e apaixonante como América. Estêvão Antunes é bastante sutil, carismático, e com um olhar consegue transmitir todos os conflitos pessoais que Lucas enfrenta. Não tem como não gostar.