“MANAS” se aprofunda na dor invisível de jovens ribeirinhas e transforma ficção em uma denúncia social urgente
Não é raro ouvir que “a verdade dói”, mas MANAS transforma essa ideia em algo real e difícil de testemunhar. Inspirado em histórias reais sobre os lares e nas balsas de comércio que circulam pela Ilha do Marajó, no Pará, o longa revela uma realidade cruel que permanece invisível aos olhos da sociedade. É um filme que mostra a dor, enquanto faz o público senti-la como uma presença constante, sufocante, quase física.
História que causa angústia
A narrativa acompanha Marcielle, uma menina de 13 anos que vive com os pais e os irmãos em uma comunidade ribeirinha da região. Instigada pelas falas da mãe, ela cresce idealizando Claudinha, a irmã mais velha que “arrumou um homem bom” e partiu nas balsas que atravessam o rio. Ao amadurecer, a menina vê suas ilusões desmoronarem à medida que se vê cercada por abusos e situações opressoras. Quando percebe que seu futuro caminha pelo mesmo destino da irmã, ela decide romper o ciclo e confrontar o sistema violento que domina sua comunidade.
A construção de um trauma coletivo
Diante da impossibilidade de expor meninas reais e reviver traumas diante das câmeras, a diretora Marianna Brennand, escolheu a ficção como forma de dar voz a essas histórias silenciadas. Construída sobre uma pesquisa de dez anos e mesmo sendo uma obra ficcional, o longa provoca uma sensação brutal de realidade. A imersão se torna possível também graças ao trabalho impecável da equipe de som, que mistura silêncio com sons ambientais da Amazônia. A floresta, os rios, os galhos quebrando e o som da água formam uma moldura sonora tão viva que o público se sente dentro da cena, carregado por uma tensão constante.
O filme evita o sensacionalismo. A violência não é escancarada, mas sugerida em gestos, olhares, pausas e silêncios que pesam como gritos. A sugestão diz mais do que a imagem explícita. E é justamente isso que torna o longa tão angustiante e forte.
Um cotidiano simples que esconde o horror
“Manas” começa retratando um dia a dia singelo, marcado por tradições da região. Vemos a produção do açaí, as roupas sendo lavadas no rio, refeições acompanhadas de farinha. A naturalidade dessas cenas reforça a inocência da protagonista, que se joga em apresentações escolares e vive uma infância cercada por pequenas descobertas.
À medida que o filme avança, o tom muda. A atmosfera se torna mais opressiva, quase sufocante. Isso acontece principalmente graças à atuação arrebatadora de Jamilli Correa, que transmite camadas de dor, dúvida e coragem mesmo em momentos de silêncio. Ela segura o peso da narrativa com uma força rara, conduzindo o público por uma caminhada de despertar e resistência.
O ambiente se torna personagem
A ambientação do filme é parte essencial da construção da angústia. As casas de madeira às margens do rio, o isolamento geográfico, o som abafado da floresta. Tudo contribui para um clima de constante alerta. O cenário pressiona, sugere o perigo e prende o público como se estivesse sendo vigiado o tempo inteiro. É impossível assistir sem sentir um nó na garganta. A cada cena, a sensação de ameaça se intensifica.
A escolha por filmar nas comunidades ribeirinhas, entre águas barrentas e construções precárias, traz uma dimensão visual potente. As pessoas que vivem ali, são retratadas como figuras apagadas pelo sistema. Não possuem documentos, nem voz. Esse apagamento é reforçado em uma cena marcante protagonizada por Dira Paes, que carrega na interpretação a dor acumulada pela sensação de impotência.
A formação silenciosa dos homens
Embora o foco do filme esteja nas meninas, a narrativa também aponta, com sutileza, como os meninos dessas comunidades são condicionados desde cedo a aceitar essa estrutura de opressão. A fé ensinada nas igrejas, a naturalização dos abusos ao redor e a ausência de perspectivas criam homens que, muitas vezes, repetem padrões violentos. É uma crítica que atravessa o enredo sem ser verbalizada, mas que se mostra através dos comportamentos reproduzidos.
Título que revela a força da irmandade
O nome “Manas” é um dos elementos mais simbólicos do filme. Não se refere somente às irmãs de sangue, mas às mulheres que compartilham histórias semelhantes, traumas, dores e resistências. É uma irmandade forçada por um sistema cruel, mas que se transforma em afeto e apoio silencioso. O título ganha ainda mais força no desfecho do longa, quando entendemos que a solidariedade entre as mulheres pode ser a única saída. Ao provocar desconforto, o filme cumpre sua missão de não deixar ninguém sair ileso. Uma obra difícil, necessária, que fala de meninas reais que vivem às margens dos rios amazônicos e da própria sociedade.
“Manas” já está em cartaz nos cinemas.
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